O Estorvo
3º colocado no I Concurso Municipal de Conto (categoria Adulto)
Prêmio Prefeitura de Niterói/ UNIPLI
publicado na coletânea “I Concurso Municipal de Conto”, Niterói Livros, 2003
Ao completar quarenta anos, ele se levantou da cama pronto para mais um dia. Foi ao banheiro, tomou um banho rápido e barbeou-se grosseiramente, ganhando uma pequena cicatriz no rosto já marcado pelos anos. Vestiu seu melhor terno e, como de costume, comeu apenas duas torradas de café-da-manhã. Bebeu rapidamente uma xícara de café feito no dia anterior, pegou sua maleta e saiu de casa, ignorando o jornal deixado sob o batente da porta pelo entregador.
O primeiro grande desafio do seu dia-a-dia era entrar no elevador e apertar o pequeno botão com a letra "p". A partir desse momento, ele já não teria mais coragem de voltar para casa e esconder-se do resto do mundo, que seria um lugar perigoso, em sua opinião. Cheio de criaturas indiferentes à sua existência. Não havia uma pessoa que se importasse com ele. Os pais, que eram os únicos parentes, haviam morrido há quase dez anos, de "velhice" mesmo. Ele nunca se casou. Não por desacreditar do amor, mas por achar que mulher alguma seria capaz de amá-lo. Amigos, jamais os teve, pois acreditava que estes seriam rápidos a se tornarem seus inimigos.
Após passar pelo porteiro do prédio com o habitual "bom dia", se dirigiu à estação do metrô, que era convenientemente perto dali. Desdeu a escada rolante e logo já estava à beira dos trilhos, esperando de pé a sua condução diária para o trabalho. E enquanto olhava para os trilhos eletrificados, crescia dentro dele a idéia de se jogar neles, terminando assim a sua miserável vida. Ninguém sentiria sua falta, ninguém. Seria uma morte rápida, indolor talvez.
Deu um passo à frente e se inclinou, quando veio à sua mente o pensamento de que se ele se matasse logo ali, eletrificado e transformado em carvão, a estação de metrô seria interditada pela polícia até que o rabecão viesse buscar seu corpo. Isso atrasaria muita gente, que não conseguiria chegar no trabalho na hora. Não, morrer desse jeito atrapalharia a vida de muita gente, ele não tinha o direito de fazer isso, seria um incômodo muito grande.
Entrou no trem e sentou-se. Quatro estações depois, chegou ao seu destino. Em poucos instantes, já se via andando nas ruas do centro da cidade. Ele odiava ter que olhar todos os dias aquela enorme massa de gente indo e vindo, como um monte de formigas. Parou no sinal de trânsito, esperando a luzinha verde aparecer para atravessar a movimentada avenida. Logo percebeu a impressionante velocidade com a qual os ônibus passavam à sua frente, desabalados em seus rígidos horários. Talvez se ele se jogasse ali... Não, não. Isso não seria justo com os passageiros ou com o motorista do ônibus. E se alguma criança estivesse lá dentro? Haveria problemas para todos, isso não seria adequado.
Chegou à portaria do prédio onde funcionava a sua empresa. Era uma dessas grandes multinacionais que contratam milhares de pessoas pelo país afora, e ele era apenas mais um número para a gigante onde trabalhava. Mostrou seu crachá para o parrudo segurança e logo chegou a mais um elevador; só que desta vez, ele apenas dizia um desanimado "vigésimo" e um ascensorista de idade avançada apertava o botão onde se lia “vinte”. Ao sair, se deparou com o "Setor de Contabilidade" escrito numa placa. Ela indicava que ele estava no lugar certo, e ao mesmo tempo no lugar errado, afinal de contas ele preferia estar em casa se escondendo.
Após passar por duas recepcionistas e três mesas de secretárias, chegou ao seu escritório. Bem, talvez esta seja uma palavra forte demais para algo que se parecia com uma saleta de almoxarifado. Destrancou-a e entrou, esquivando-se das caixas cheias de papéis inúteis. Sentou-se em sua cadeira, colocou a pesada maleta na mesa e suspirou. Enquanto olhava à sua volta, pensou no quão deprimente era o lugar onde ele passava seus dias, envolto em números e contas. Virou a cadeira e puxando um cordão abriu a persiana que escondia uma janela suja. Lá embaixo, podia ver tudo aquilo com o qual tinha se deparado no caminho para o trabalho: a estação do metrô, as formigas andando, os ônibus, as ruas de escaldante concreto.
Pensou então em se jogar da janela. Sim, seria rápido e indolor. Ele tinha lido em algum lugar que os suicidas que pulam de prédios muito altos desmaiam durante a queda, desfalecendo antes de se espatifarem no chão. Isso logo o levou a pensar o porquê dos paraquedistas não terem o mesmo final trágico toda vez que pulam de um avião. Concluiu que eles, tendo treinamento especial, não desmaiam. Abriu a janela e, decidido, olhou para baixo. Ao ver as pessoas andando na calçada, recuou e fechou novamente a janela. Lembrou-se de que sua queda poderia acidentalmente matar uma pessoa. Ele não gostou nem um pouco da idéia de tirar a vida de um inocente, sem contar o estrago que seu corpo faria na calçada.
Novamente sentou na cadeira e voltou-se para a mesa cheia de papéis. Era um funcionário apenas mediano, não se destacava nem atrapalhava o serviço. Cumpria prazos e acatava ordens. Essa era sua vida, um ponto sem interrogação nem exclamação. Foi então que tomado por incomum determinação, abriu sua maleta e sacou de dentro dela uma caixa de madeira. Com muito cuidado, retirou a tampa e lá dentro estava a arma de seu falecido pai, que era militar.
Não entendia muito de assuntos bélicos, mas sabia fazer a manutenção do Colt calibre 45, que era o tesouro do pai. O revólver foi presentar de um amigo norte-americano, falecido também há anos. Cautelosamente colocou as seis balas na arma, fechou-a e engatilhou-a. Agora sim. Um tiro na cabeça seria um final muito adequado à sua existência de importância irrelevante. Estava totalmente livre de quaisquer amarras ou dilemas morais. Talvez o seu suicídio desse algum problema à faxineira da empresa, mas não seria nada que um pano com desinfetante não pudesse resolver.
Quando já apoiava o cano do revólver contra a testa, ouviu o som rangido da maçaneta da porta sendo aberta. Com um movimento rápido, escondeu a arma debaixo da mesa e longe dos olhos de quem entrasse. Logo apareceu a figura do diretor de contabilidade, que jogando uma pasta cheia de papéis com número na mesa disse: "Eu preciso desses balanços para hoje, Moreira."
Para hoje. Ainda hoje. Sim, ele teria que terminar o balanços, não poderia se matar hoje. Talvez amanhã, mas se ele se matasse hoje seria um estorvo.